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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Instituições pregam fim do vício por meio de fé e trabalho

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Instituição Manassés é a que recebe mais jovens
Foto: Divulgação

Amanda Miranda Do NE10
É rotina para os passageiros de ônibus do Grande Recife ouvir histórias de (ex)dependentes químicos que sobem nos coletivos afirmando que foram curados pela palavra de Deus. Depois, sempre vem o pedido para que comprem os kits informativos sobre as instituições que os acolhem, geralmente vendidos a R$ 2. É através desse trabalho que se mantêm estabelecimentos como a Casa de Recuperação Canaã, em Itamaracá, e a Instituição Manassés, em Jaboatão dos Guararapes, ambos na Região Metropolitana do Recife. Apesar terem métodos de atendimento e estrutura diferentes, as duas têm em comum o uso da fé e do trabalho em busca da cura, não comprovada cientificamente.
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Ilustração: Bruno de Carvalho/NE10

Sempre com sotaque de fora de Pernambuco e geralmente evangelizando com os mesmos versículos, os jovens da Instituição Manassés são maioria nos ônibus. Este mês, são 41 obreiros, como são chamados no estabelecimento, atuando de segunda a sábado, das 6h às 20h. "O tratamento para quem é de Recife não é feito aqui. Não adianta colocar a pessoa no mesmo lugar onde ela sempre morou porque ela já sabe onde ficam os pontos de venda de drogas. É mais fácil cair (voltar a consumi-las)", explica um dos diretores, Luiz*. Segundo a casa, a cada trinta dependentes que iniciam o tratamento, apenas três o concluem nos nove meses para a desintoxicação - o restante abandona a instituição.
Tratamento na Instituição Manassés
Primeira fase desintoxicação dura duas semanas e é feita dentro da casa da instituição, no bairro de Piedade, em Jaboatão. Os internos, que são hospedados em quartos separados dos demais, participam de cultos e de atividades de limpeza e na cozinha
Fase intermediária treinamento dura em média duas semanas, tempo em que os alunos acompanham jovens que já estão na instituição há mais tempo para aprender como é feita a venda dos kits
Segunda fase reintegração social o restante do tratamento é feito com os dependentes químicos nas ruas, ajudando a instituição com a venda dos "folhetos informativos"
Segundo o vice-diretor do Manassés em Pernambuco, durante todo o período de internamento, os jovens têm rotina fixa, com horários para as principais atividades do dia: acordam às 5h e vão para a primeira oração do dia, que começa 15 minutos depois. Às 6h, muitos já tomaram banho e café da manhã e saem para vender. Se quiserem, podem voltar para a instituição para almoçar ao meio-dia. Ao longo do dia, têm liberdade para sair pelo Grande Recife vendendo os kits. O ingresso nos ônibus sempre é feito de forma gratuita, quando há permissão do motorista, embora a venda em coletivos ser proibida. Um culto é realizado todos os dias às 20h, seguido do jantar, às 21h. "A nossa cura vem pela palavra de Deus, pelo estudo da Bíblia e pela fé", afirma.

Quem entra na casa que abriga os jovens da Instituição Manassés tem acesso primeiramente ao templo usado duas vezes por dia e localizada no térreo da grande casa na rua de imóveis de muro alto e aparentemente para moradores mais abastados. Ainda no térreo, ficam a cozinha, o escritório, a sala onde são confeccionados os kits e dois quartos apertados onde estão dois beliches para os novatos. As dependências para os mais antigos ficam no primeiro andar. Sem funcionários, os próprios ex-usuários são responsáveis pela limpeza e organização.

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Os internos podem usar a área de lazer da Instituição Manassés nos domingos (Foto: Amanda Miranda/NE10)

De acordo com Luiz, mesmo após o pagamento das despesas com o aluguel da casa e as contas de água e luz, sobra uma parte do dinheiro arrecadado na venda dos kits - cada interno deve vender cerca de 100 de segunda a sexta; o dinheiro daqueles comercializados nos sábados vai para os próprios obreiros. "Assim, eles aprendem a lidar com o dinheiro e se relacionar com pessoas sem voltar a usar droga", afirma. A família dos internos não precisa custear a chamada recuperação - apenas a passagem para que ele chegue ao Recife.

Por dia, Luiz recebe pelo menos 70 ligações de familiares de viciados. A dependência é principalmente em crack e álcool. Para eles, a resposta parece ter sido decorada como a pregação dos internos nos coletivos: "Você tem que ligar pela manhã para marcar a triagem para a tarde. O jovem deve ter entre 18 e 40 anos e querer se tratar. Deve vir das 14h às 17h, lúcido e acompanhado de um responsável. Os demais procedimentos são explicados na entrevista". Por dia, são feitas cerca de cinco procedimentos de triagem, porém a maioria desiste ao saber que deve sair de perto da família. As visitas de parentes só podem ser feitas após seis meses de internação, para evitar quaisquer memórias da vida que levavam antes.

Luiz assumiu a vice-direção da Manassés no Estado há seis meses, porém está na instituição desde 2011. "Usava cocaína e maconha, mas não era viciado. Procurei a internação porque tenho nove processos na Justiça e o meu advogado disse que seria uma maneira de não ser preso. Só um ano depois deixei o crime. Agora, quero ver os outros prosperarem também", contou. Hoje vice-diretor, ele acredita que a cura está na fé em Deus e que a psicologia e a qualificação profissional, sozinhas, não conseguem reintegrar socialmente os dependentes químicos.
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Cultos são realizados diariamente na Manassés (Foto: Amanda Miranda/NE10)
Como na Instituição Manassés, a Casa de Recuperação Canaã é dirigida por dependentes químicos que se recuperaram, o pintor Ronaldo José Ritinho, 38, e o vendedor Marcos Antônio Araújo, 34. Com o mesmo propósito do outro estabelecimento, de "curar" o vício em drogas através da fé, a casa foi fundada em um terreno comprado pela mãe de Marcos há três anos, sem vizinhos próximos e em rua não asfaltada. A casa, em obras constantes feitas pelos próprios diretores, ainda não tem cerâmica e tem grande parte coberta por telhas antigas. "Se serviu para mim e para Ronaldo, posso ajudar outras pessoas da mesma forma", afirma. No entanto, na CRC os internos têm terapia com dois psicólogos voluntários nas quartas-feiras e domingos e atividades físicas, além dos estudos bíblicos.

Com base na conscientização, no amor e na confiança, de acordo com os diretores, o tratamento na casa de recuperação também dura nove meses. "A droga ainda está no sangue nos cinco primeiros meses e nos outros acontece a ressocialização", justifica Marcos. Na primeira fase, os usuários são proibidos de sair do sítio na Ilha de Itamaracá, sendo vigiados por câmeras de segurança instaladas pelo terreno. Depois, quando estão prontos, na avaliação dos diretores da casa, começam a sair diariamente para vender os kits.
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A CRC fica em um sítio em Itamaracá. Lá, os internos têm conversas com psicólogos e atividades (Foto: Divulgação)

Com cinco obreiros trabalhando de segunda a sábado, a instituição consegue vender aproximadamente 250 por dia. "Quem vende recebe R$ 150 por semana para dar à família ou pagar as dívidas que muitos ainda mantêm com o tráfico na área onde moram" afirma Araújo. Agora, a instituição procura voluntários para dar aulas e qualificar os internos profissionalmente. "Muitos acabam voltando para as drogas porque saem daqui sem emprego e qualificação", explica Ronaldo. "Entre os convertidos ao evangelho, o efeito é maior", acrescenta o outro diretor. Na estimativa dos diretores, o índice de recuperação é de 60%. Para a coordenadora de Saúde Mental do Recife, a dependência é mesmo provocada pelas outras vulnerabilidades.

PREFEITURA - De acordo com a coordenadora de Saúde Mental do Recife, Telma Melo, estabelecimentos como o Manassés são considerados comunidades terapêuticas. A psicóloga não considera o trabalho feito nelas como tratamento. "Para isso, deve passar por uma série de ações de uma equipe multidisciplinar de saúde. A comunidade terapêutica é uma forma de lidar com a dependência, mas não pode ser já associada ao tratamento", explica.
Não existe cura para a dependência. O paciente aprende a conviver com esse quadro clínico
O tratamento pode ser feito através dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), da prefeitura, com seis unidades de atenção a viciados em drogas e álcool em cada distrito sanitário da cidade. Lá, os procedimentos são definidos de acordo com as necessidades dos pacientes, acompanhados por médicos, psicólogos e outros especialistas. "Os usuários precisam de uma rede diversificada de cuidados. Nem sempre há necessidade de internamento, por exemplo, mas em todos deve ser estimulado o acompanhamento em casa e do ambiente familiar e profissional, evitando romper vínculos de trabalho e educação, que são muito importantes. Não trabalhamos concebendo como se eles fossem ser curado; o importante é a redução de danos, proporcionar autonomia e o fortalecimento das pessoas. Tentamos trabalhar para que pessoas percebam que o prazer que a droga é fugaz e tem consequências negativas", explica.

* nome fictício

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